Hervé Mons e Débora Pereira, especialistas franceses, dão seu depoimento sobre a importância do ambiente para a produção de leite e derivados de qualidade.
“Em nossa passagem pelo Brasil, em abril de 2017, para a realização de cursos de cura de queijos de leite cru artesanais, tivemos a oportunidade de conhecer o maior salão de gado Zebu do mundo, a ExpoZebu, que acontece todos os anos em Uberaba, Minas Gerais.
A qualidade do rebanho zebuíno brasileiro é conhecida no mundo inteiro, sendo o Brasil um grande exportador de sêmen bovino. Mas nosso interesse era descobrir mais sobre a qualidade da alimentação dessas vacas, pois isso reflete, diretamente, no leite e no queijo.
Nos anos 70, programas de extensão rural norte-americanos que atuaram em universidades agrícolas brasileiras disseminaram a prática de silagem como alternativa saudável para a alimentação dos rebanhos. Hoje em dia, no entanto, essa prática é abominada, na Europa, como potencial causadora de contaminações patógenas, como a Listeria e as bactérias butíricas. A maioria dos rebanhos confinados é alimentada com silagem, composto fermentado feito à base de cereais (principalmente, milho) e guardado em locais desprovidos de oxigênio. É uma alternativa econômica para épocas de escassez de pastos, mas, pensem bem, qual seria a qualidade do leite de uma mulher que só come chucrute (prato típico alemão feito com repolho fermentado)? Certamente, o bebê alimentado com esse leite teria problemas de cólicas abdominais.
Na França, atualmente, os consumidores estão muito preocupados com o bem-estar animal, e Ongs voltadas para essa causa estão etiquetando, nos supermercados, os queijos e produtos lácteos feitos com leite de vacas confinadas. Eles colam, sobre os produtos, etiquetas adesivas com frases como: “não compre esse produto feito do leite de vacas que vivem em prisão e que não pastam na Natureza”. Os ativistas também marcam ponto na porta de supermercados e queijarias para conscientizar os consumidores a não financiarem a indústria leiteira que cria vacas em regime de confinamento. Impedir uma vaca de passear na Natureza, sendo que ela vivia nos pastos de modo natural, resulta em um animal tenso e estressado.
Durante as clínicas de avaliação de queijos artesanais que realizamos no Brasil, percebemos que a maioria dos queijos que apresentavam defeitos, como inchaço e mau cheiro após 15 dias de fabricação, mostrava um sinal de contaminação por bactérias butíricas, e eram queijos de produtores que alimentavam seu gado com silagem em sistemas de confinamento. Além disso, no Brasil, para a conservação da silagem, é permitido o uso de aditivos altamente prejudiciais à saúde, como ácido fórmico e cloreto de sódio.
Nós lançamos, então, um desafio para alguns produtores de queijo artesanal, pedindo a eles que parassem de alimentar seu gado com cereais fermentados. O objetivo era avaliar as análises microbiológicas do leite, antes e depois da mudança da alimentação, e observar a qualidade do queijo em seu processo de cura.
Os produtores Camila e Eduardo Falcão, da Estância Silvania, a 150 km de São Paulo, aceitaram o desafio e mudaram a alimentação das vacas em lactação (42 vacas Gir). Elas passaram a não comer silagem em um período de transição que durou 3 meses. Camila é zootecnista e começou a planejar a substituição da alimentação realizando, primeiramente, um estudo dos capins”.
“Na maioria das fazendas brasileiras, predomina o capim-braquiária (Brachiaria sp.) de origem africana, que é muito invasivo e, praticamente, eliminou os capins nativos. Nós estamos substituindo, gradualmente, o braquiaria pelo capim-gordura e o estrela (Rhynchospora consanguinea)” explicou Camila. Ela complementa também com o capim-napier (Pennisetum purpureum) cortado e servido fresco no cardápio das vacas.
Para organizar o piquete rotacionado, Camila separou onze áreas de 1 hectare cada. As vacas pastam de dois a três dias em cada piquete.
“A mudança no leite foi fortemente sentida, o sabor ficou mais doce e a textura dos queijos mais macia, notamos que o processo de coagulação agora é mais lento, o queijo guarda mais umidade e por isso a textura conserva a maciez”, observou Camila.
As análises microbiológicas mantiveram os altos índices de gordura e proteína (MG 4,8% e 4,1% de proteínas). Por outro lado, a contagem de células somáticas diminuiu muito.
“As vacas Gir são, por natureza, um gado para pastar. Se elas pastoreiam e se alimentam todos os dias em um ambiente natural, há uma resposta imune muito mais forte, elas não estressam, não adoecem. Além disso, a ordenha com o bezerro ao pé da vaca motiva a felicidade do rebanho como um todo” disse Camila.
A Estância Silvania produz cerca de 700 litros de leite por dia que transforma em queijo minas padrão, frescal, muçarela no soro, em barra e manteiga. Camila lançou também uma linha de queijos artesanais finos: Valoro (receita adaptada da raclette francesa), Dom (curado com gengibre), Primavera (com flores) e Serrinha (tipo canastra) lavado na cerveja, defumado e natural.
Referências bibliográficas:
Livro Leite Cru: A verdade que vai mudar sua vida. Editora Gaia. 2019